Jornal W, 17 Mai. 2009
Bento XVI, na solene canonização do Condestável, exaltou, segundo Massimo Introvigne, «a figura do cavaleiro cristão empenhado na militia Christi, ou seja, no testemunho que cada cristão é chamado a dar no mundo». Já na pastoral colectiva do episcopado português, de 1960, se reconhecia que «Nuno Álvares foi sempre igual a si mesmo: cavaleiro invencível na guerra, cristão exemplar no cumprimento das virtudes» e, por isso, «a emissão dos votos canónicos foi apenas consagração de uma vida já de há muito profundamente cristã».
Em termos semelhantes, o nosso Patriarca, no encerramento do processo diocesano, sublinhava: «Em D. Nuno Álvares Pereira foi impressionante esta síntese harmónica da vivência da sua fé e o desempenho das altas funções que a Nação lhe atribuiu». Se este foi o entendimento do Santo Padre e dos nossos Bispos, outro foi o parecer dos fiéis que manifestaram algum desconforto pela canonização de um guerreiro. Para estes, a glorificação do Condestável seria suportável só porque esse seu passado mais não seria do que uma etapa prévia à sua conversão, sobre a qual viria agora a incidir a bênção da canonização. Entendem portanto que só o monge foi elevado aos altares, permanecendo apeado o leigo cristão, o militar valeroso, o dadivoso milionário, o filho obediente, o marido fiel, o casto viúvo, o pai exemplar, o leal conselheiro do rei, o humilde conde e o invencível condestável.
Se a nobilitação de Camilo Castelo Branco inspirou uma divertida caricatura de Rafael Bordalo Pinheiro, em que o novo titular expulsava o genial escritor, dir-se-ia que a canonização de São Nuno deu azo a serôdios episódios de ultramontano clericalismo, na voz dos que insistem em ignorar a vida santa do santo leigo e teimosamente pretendem ainda, ao arrepio dos ensinamentos conciliares, que a santidade é um privilégio exclusivo da casta sacerdotal e da vida religiosa em geral.
Assim sendo, perdoa-se ao Santo Condestável o seu passado laical, em nome da consagração religiosa que coroou a sua vivência cristã, ignorando-se que a sua identificação com Cristo não ocorre apenas, nem principalmente, no último episódio da sua vida, mas é a realidade que vivifica toda a sua anterior existência, profunda e essencialmente secular. São Nuno não foi santo apesar do seu estado laical e da sua vida profissional, mas, pelo contrário, santificou-se em e através do fiel cumprimento dos seus deveres de estado, como filho, esposo e pai de uma família cristã, como competentíssimo profissional da guerra e como fidelíssimo cidadão. A sua tardia profissão religiosa não é a mais significativa expressão da sua santidade, mas apenas o seu último episódio. São Nuno, como afirmou D. José Policarpo na acção de graças pela sua canonização, «continua a dizer-nos que é possível viver com fé todas as realidades humanas, sociais, políticas, militares, familiares, religiosas; continua a dizer-nos que é possível ser santo em todas elas, que se pode viver toda a vida com Deus, que nos vai sugerindo, em cada momento e em cada circunstância, a maneira de acreditar e de amar».
Desculpem-me este meu anticlericalismo, à conta não só do que o Concílio Vaticano II ensina, mas também da multissecular tradição da Igreja, que atribuiu, desde tempos imemoriais, o título de santíssima a uma única criatura: Maria, a filha de Joaquim e de Ana, a esposa de José e mãe de Jesus, que nunca professou na vida religiosa e se santificou através dos seus deveres familiares, religiosos, sociais e profissionais. Não estranha, pois, que tenha sido esta santíssima mulher o exemplo de santa virtude que iluminou toda a vida santa de São Nuno de Santa Maria.
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