Foi uma conversa longa, entre duas pessoas que não se viam há 16 anos. Nessa altura, José Rafael Espírito Santo, o líder do Opus Dei em Portugal, era capelão de um colégio em Lisboa. O padre Espírito Santo era tido como uma figura "porreira" entre os alunos, todos rapazes - acessível, longe das personagens mais sombrias e disciplinadoras, bom de bola (tinha um pé direito temível). Ainda hoje o vigário regional do Opus Dei - a designação do cargo que ocupa na instituição católica ultraconservadora, que em Portugal conta com 1500 pessoas - é de uma simpatia desarmante. O contraste com a rigidez milimétrica da sua doutrina não podia por isso ser maior. A consciência do efeito dessa rigidez, a espaços, é revelada. "Veja lá, não faça aí um artigo em que me crucifiquem no dia seguinte", brinca. No final da entrevista passo a ser de novo um antigo aluno e a pergunta surge: "Então como vai essa vida?" Vai distante da Igreja, respondo. "Sim, mas sabe, nada disso é irreversível?" No Opus Dei, quando o assunto é Deus, está-se sempre a trabalhar.
Qual é a necessidade de ter um Opus Dei havendo a instituição Igreja?
O Opus Dei surgiu por iniciativa de Deus. A própria Igreja reconhece que há uma iniciativa de Deus que inspira o seu fundador, São José Maria. Quando vê este fenómeno que surge fazendo parte do seu depósito, a Igreja reconhece que é um elemento da sua missão para difundir a santidade nas circunstâncias correntes da vida.
Quando se entra no Opus Dei a relação é para a vida?
A pessoa que entra para o Opus Dei, Deus chama-a para que viva isto. Por ser vocação, a pessoa vê que a razão de ser da sua existência é esta.
É uma relação de amor com Deus?
Exacto, de amor com Deus.
Mas é possível sair do Opus Dei?
Sem dúvida. Aqui não está ninguém que não queira.
Há um paralelismo com o divórcio. Porque é que alguém que encara essa relação com Deus como um compromisso para a vida pode sair, mas a Igreja não aceita que duas pessoas casadas possam sair de um casamento?
Mas aí a questão é a seguinte: a relação de cada um com Deus é algo que tem um âmbito que permanece entre Deus e a pessoa. Quando alguém que se comprometeu a viver de uma determinada maneira com Deus quer mudar esse compromisso é entre ela e Deus, mas não há consequências para terceiros. Quando é o casamento entre um homem e uma mulher é um compromisso que os dois assumem - e que é também assumido por Deus. É um compromisso a três, entenda-se. As pessoas quando assumem esse vínculo querem que esteja para além das suas possibilidades. E como é uma relação com outras pessoas, mesmo com o comum acordo? quer dizer? isto a questão do divórcio tem muito que se lhe diga.
Como?
Quando as pessoas casam para sempre, a partir daí toda a sua vida, o modo como enfrentam as dificuldades que são normais no seu relacionamento é totalmente diferente de quando se casam "a ver se dá". E portanto é o casamento para toda a vida que permite que vá depois amadurecendo o verdadeiro amor.
Mas e se for um engano? Pode haver, certo? E se for pior, um comportamento extremo, por exemplo, de violência?
Por um lado, as pessoas têm que casar conscientes, saber bem o que estão a fazer. O problema é que as pessoas encaram a felicidade como sendo "para mim". O amor é possessivo. Tu para mim. Não é eu dou-me a ti - isso é que é o verdadeiro amor. Mas em situações muito difíceis está prevista a separação, não a dissolução do vínculo.
Mas isso significa que, teoricamente, quem se separa não pode reiniciar a sua vida com outras pessoas?
Teoricamente e na prática, se a pessoa quer viver bem a sua relação com Deus.
Como se pode aconselhar pessoas sobre uma vida a dois quando nunca se teve essa experiência?
Bom, eu tive uma experiência de vida a cinco: com os meus pais e os meus irmãos.
Sim, mas enquanto filho, não ao lado de alguém?
Está bem, mas aí uma pessoa aprende o que é o relacionamento entre as pessoas, o que significa perdoar, compreender, ajudar--se. E depois basta ter o conhecimento do que é o coração humano.
Viveu numa família feliz?
Eu? Graças a Deus sim. Ainda agora tivemos a comemoração dos 60 anos do casamento dos meus pais. Com dificuldades, claro, tivemos momentos muito difíceis.
Agora que está sobre a mesa o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, o Opus Dei vai adoptar algum combate para defender a sua posição?
O Opus Dei faz parte da Igreja e é um dos instrumentos pelos quais a Igreja leva a cabo a sua missão. Portanto não há uma posição que seja diferente - o que se faz é seguir o que dizem os bispos. Não há propriamente uma tomada de posição. O que se ensina é a doutrina da Igreja para que os cristãos, que são membros de uma sociedade, saibam depois defender os seus pontos de vista e ir ao encontro da boa vontade que está nas outras pessoas. Para que se abram à verdade no que diz respeito ao amor humano, por exemplo, nesse caso.
Porque é que duas pessoas do mesmo sexo não podem casar civilmente?
O que é o casamento? Temos que começar a ver isso - o que significa o casamento como instituição natural - e é a partir daí que têm de se tirar as conclusões. Não podemos identificar o direito com a moral, o direito não pode obrigar as pessoas a serem boas. Mas tem de regular as relações entre as pessoas na sociedade para defender o bem comum. Portanto, não se identificando com a moral, tem também de mostrar uma orientação do ponto de vista dos valores. É uma questão que tem de ser debatida na sociedade sem ir atrás de slogans muitas vezes superficiais, indo ao fundo da questão, sem ter preconceitos.
Parece irónico falar assim de preconceito... não é a Igreja que tem preconceitos nesta questão?
Não, é precisamente o contrário. Para olhar para esta questão de modo objectivo há que não ter preconceitos. Isso faz com que as pessoas saibam olhar para a pessoa humana, para a natureza, para ver como é o homem no seu ser natural, e não ter preconceitos. Repare: temos de ter essa capacidade de estar ao lado de quem tem problemas, e ajudar.
Estamos então a falar de um problema pessoal?
É uma situação com que a pessoa tem de saber lidar, tem de saber resolvê-la. E eu procurarei dar a ajuda que acho que é a melhor para essa pessoa.
Em Portugal, país em que a Constituição define um Estado laico, esta questão antes de ser religiosa não é de igualdade de direitos civis?
É uma questão de perspectiva da pessoa humana. Igualar direitos civis, tudo bem, mas o que significa essa igualdade? Estar a tratar de maneira igualitária situações que são diferentes é uma injustiça.
Que papel têm as mulheres no Opus Dei?
As mulheres têm o mesmo papel que os homens e têm mais um, que faz com que ainda sejam mais importantes no Opus Dei - é exactamente por serem mulheres que têm essa capacidade de cuidarem da casa. Toda a mulher tem uma vocação para mãe e dona de casa, mesmo que não seja mãe na prática. Têm uma sensibilidade especial para isso.
As mulheres têm o mesmo papel que os homens e têm mais um, que faz com que ainda sejam mais importantes no Opus Dei - é exactamente por serem mulheres que têm essa capacidade de cuidarem da casa. Toda a mulher tem uma vocação para mãe e dona de casa, mesmo que não seja mãe na prática. Têm uma sensibilidade especial para isso.
Mas um homem não pode fazer isso?
Bom, é uma constatação de facto. Isto a favor das mulheres, porque elas têm uma sensibilidade e uma capacidade de atenção ao pormenor que muitas vezes escapa ao homem. Evidentemente, repare, as mulheres não estão para servir os homens. Cuidam dos centros do Opus Dei dos homens e das mulheres. Aí é um ponto de honra, porque é viver o verdadeiro feminismo, com uma consciência do que significa a dignidade de ser mulher. E os homens não deixam nada por fazer que eles não possam fazer.
Por exemplo?
A cama. Deixar a roupa tratada, as coisas arrumadas, por exemplo.
O foco tão grande na castidade não põe a mulher sempre num papel negativo, de fonte de tentação?
Se olha só para essa perspectiva, sim, mas não estou a ver onde se focam as coisas nessa perspectiva. O que acontece é que na sociedade há um serviço da mulher como objecto e isso provoca depois um certo ambiente carregado de sensualidade. Isso é degradar a mulher.
A sensualidade é uma coisa má?
A sensualidade como uma desordem, algo que não leva a viver o amor com autenticidade, é uma coisa má. Mas a sexualidade é uma coisa boa, extraordinária, que permite viver o amor entre um homem e uma mulher, de realização pessoal. Não há nenhuma visão negativa da sexualidade, antes pelo contrário: é uma coisa santa. Como qualquer coisa santa é preciso respeitá-la.
O uso de métodos contraceptivos desrespeita essa santidade?
Aí não podemos esquecer que temos de olhar para Deus, para a vocação a que Deus nos chama ao amor à santidade. A entrega que se vive na relação sexual entre um marido e uma mulher é total, sem condições. O marido aceita uma mulher com uma capacidade de ser mãe e a mulher aceita o marido com a capacidade de ser pai. Isso é um elemento essencial para que aquele relacionamento seja expressão de amor autêntico.
Fala só de sexualidade dentro do casamento, mas na vida a sexualidade não é construída nesses termos. Quando o ouço falar - ou a Igreja -, vejo sempre que há uma diferença grande entre o que consideram ideal e a realidade. No caso em que há riscos para a saúde, a posição da Igreja contra o preservativo - como defendido pelo Papa na viagem recente a África -, não é irresponsável?
Leu as declarações do Papa? O que o Papa disse é que o modo de combater a sida é com uma mudança comportamental e que não se resolveria esse problema só com a distribuição de preservativos - isso só agravaria o problema. É uma constatação de facto; basta ver em África onde houve melhor resultado contra a sida - no Uganda, o país que implementou uma política "ABC": "abstinence", "be faithful" e "condom". Em primeiro lugar, a abstinência e a fidelidade, e depois em terceiro lugar o preservativo. E onde teve piores? Onde se recorreu à distribuição de preservativos em massa - a África do Sul. As pessoas muitas vezes distorcem o que diz o Papa?
Mas então não exclui o preservativo como instrumento de combate à sida?
Eu não estou a dizer que ali [Uganda] haja uma política que esteja completamente de acordo com a doutrina da Igreja. Faço apenas uma constatação de facto. A Igreja tem de mostrar que o ideal é possível e que vale a pena. Temos de ajudar as pessoas a conseguir esse ideal. Depois, que cada um faça o que entender, mas não faça mal a essas pessoas.
Há felicidade sem sofrimento?
É complexo. A felicidade não é um direito: é um dever. Nós estamos feitos para a felicidade, qualquer pessoa nota essa sede de felicidade no seu coração. Agora se a felicidade necessita da dor? Tenho a impressão que, vendo a vida, não é possível uma felicidade sem sofrimento. Mais: a ausência de sofrimento impossibilitaria a felicidade. A dor tem um sentido positivo.
Mas porquê? O sofrimento e a dor impelem à mudança?
Sim. Não é possível suprimir a dor do sofrimento. É uma constatação de facto - do ponto de vista pessoal e de sociedade. E por isso é que aquilo que nos dá verdadeira felicidade não é esse esforço para suprimir a dor, mas encontrar-lhe um sentido. É o que faz com que as pessoas encontrem a esperança e a alegria de viver. Uma sociedade que não saiba conviver com a dor e com quem sofre é cruel e desumana. Se eu não sou capaz de sofrer, não sou capaz de estar ao lado de quem sofre. Qual é a solução? Suprimir a pessoa que sofre. Tudo isto parece difícil de resolver, mas a resposta vem de Deus - não pode padecer, mas pode compadecer-se. Quando olhamos para Cristo na cruz, entra em todo o sofrimento humano essa compaixão. Já ninguém está só. Há a consolação.
Está a usar o cilício neste momento?
Não.
O sofrimento passa necessariamente por infligir dor física?
O valor do sofrimento está no amor, não na dor. Por isso, o caminho não é aumentar o nível da dor, mas o nível do amor. Jejuns, abstinência, esmola, penitência corporal (cilício incluído), é óbvio que pertencem ao património da Igreja. A Irmã Lúcia, o Santo Condestável, os pastorinhos praticaram todas essas formas. Não por masoquismo, mas como manifestação de amor. Cada um tem de encontrar o seu caminho, que não tem de passar necessariamente por aí. O dia-a-dia já tem suficientes canseiras e surpresas.
Esta crise financeira mostra desresponsabilização e falta de ética?
Sim. A crise que está a passar mostra o que acontece quando se põem de lado uma série de princípios éticos, quando se põe como finalidade da actividade económica meramente o lucro, que leva depois à especulação e a correr determinados processos nos quais se recorre à mentira. Esperemos que se consigam tirar ilações.
Falando de ética, como assistiu aos problemas no BCP, um banco privado associado ao Opus Dei?
Primeiro ponto: é correcta a associação?
O BCP não é um banco controlado pelo Opus Dei?
Não, quando muito era... [risos] Conhecendo bem o que é o Opus Dei e qual é a função vê-se que não fazia sentido essa associação. O Opus Dei dá formação, através de uma série de actividades ajuda a que as pessoas tenham a consciência do que significa viver a sua fé no trabalho e depois actuem livremente na família, na sociedade, na sua profissão. Ninguém em nome do Opus Dei toleraria qualquer intromissão naquilo que é o âmbito da sua liberdade de actuação. Há uns anos, numa reportagem feita sobre o Opus Dei na televisão, entrevistava-se um taxista que é do Opus Dei. Ele dizia "o táxi é meu, não é do Opus Dei, sou eu que o administro".
Ainda assim as figuras que controlavam o BCP [Jardim Gonçalves, Líbano Monteiro, mais tarde Paulo Teixeira Pinto] eram um referencial muito forte entre o Opus Dei e o que era o maior banco privado de Portugal. Ficou desiludido com o que aconteceu?
Seja com quem for, se uma pessoa que tem boa vontade tem um revés na sua vida, isso é uma coisa de que tenho pena. Se o Carlos Queiroz não levar a selecção nacional ao mundial tenho pena - é uma pessoa bem-intencionada.
Mas o Carlos Queiroz é do Opus Dei?
Não, não [risos]. Seja quem for, seja ou não do Opus Dei, as pessoas fazem o melhor que podem, mas aquilo corre mal. Agora com a crise há muita gente do Opus Dei que conta até ao último cêntimo e que se calhar passa fome. A maioria das pessoas do Opus Dei é de classe média, que vive remediada.
Isso que diz choca com a imagem de associação ao dinheiro que o Opus Dei tem?
Mas não é. Isso é uma visão superficial. Evidentemente há certas pessoas que chamam a atenção, mas não se repara nas outras, que não chamam a atenção e que são a maioria. São pessoas normais. Em Portugal podemos dizer que do ponto de vista sociológico corresponde à distribuição média da sociedade.
Ajuda essas pessoas em dificuldades?
Não, o Opus Dei não actua em grupo, muito menos procurando ajudar-nos uns aos outros. Procura-se ajudar as pessoas para que saibam enfrentar com esperança as dificuldades, que depois procurem soluções entre elas. Não faria sentido ajudar só porque são do Opus Dei. É ajudar os que estão na mesma situação.
De volta ao BCP. Consta que depois do Opus Dei é a Maçonaria que está agora a tomar conta do BCP?
O que sei é através dos jornais, não há nenhuma informação fora disso?
Não tem canais privilegiados de informação?
Não, o que sei pelos jornais é que havia um senhor que era presidente do banco que era do Opus Dei. E que depois deixou o banco - mais não sei.
Como se financia o Opus Dei?
O financiamento vem daquilo que as pessoas livremente dão de acordo com as suas capacidades. Todas as pessoas vivem do seu trabalho e dão dentro das suas possibilidades. As iniciativas que temos com uma finalidade apostólica são sempre deficitárias. E contam com a generosidade de cada um.
De quanto precisam para um ano?
Não faço a mínima ideia e é muito difícil saber.
Não há um orçamento?
Não, isto funciona tudo de maneira informal e descentralizada.
Tinham dinheiro no BPN ou no BPP?
O Opus Dei não tem dinheiro.
Não tem dinheiro?
O Opus Dei como instituição não tem dinheiro. As pessoas vivem do seu trabalho, as diversas iniciativas apostólicas têm uma estrutura dentro da sociedade civil, auto-sustentam-se.
As casas, como esta, são doações?
Sim, das pessoas. Podem constituir uma sociedade ou algo assim, mas isso depende. Funciona de modo muito autónomo.
Qual foi o último livro que leu?
Estou a ler "A Mulher Certa", de um autor húngaro, Sándor Márai. É a análise de um divórcio. Fala a mulher, depois fala o marido e depois aquela com quem o marido voltou a casar. E é ver como a vida de todos ficou completamente destroçada. Mas sou um fã de Dostoievsky.
E de Saramago?
E de Saramago?
Saramago? Francamente, eu uma vez comecei a ler um livro de Saramago e desisti à segunda página.
Qual?
"O Memorial do Convento". Ali há uma intenção desde a primeira página de transmitir determinados conceitos. Vê- -se como é uma distorção da realidade.
Desencorajam a leitura de livros que ponham em causa a fé católica?
Qualquer pessoa que lê um livro convém que antes se informe. Procura-se aconselhar as pessoas que se informem e vejam se precisam de ler um livro que possa pôr em causa as suas convicções. A fé não é uma questão de inteligência. Há pessoas muito inteligentes que não têm fé e outras menos que têm.
É como a bondade. Há muitas boas pessoas que não são religiosas....
Sim, mas se acreditassem em Deus seriam muito melhores.
por Bruno Faria Lopes, Publicado em 13 de Junho de 2009 no Jornal I